segunda-feira, 21 de março de 2011

Sem Rosto

Sem inocência

O Sol descia no horizonte, se escondendo atrás das casas apinhadas ao redor do Grande Paço. Os raios, já morrendo, tingiam de dourado as árvores, as plantações e um menino magro, ruivo, com barro dos pés à cabeça que corria para entregar a enxada ao pai.

– Pronto pai – Narciso disse com um sorriso no rosto – Essa é a ultima.
– Mesmo? Tem certeza que não esquecemos nada? – perguntou o pai.
– Sim, olhei em todos os lugares.
– Então vamos. Foi um dia longo e eu temo por nossas vidas quando sua mãe vir o estado em que você e as roupas que ela lava ficaram.
– Eu gostei de trabalhar, pai! Poderia vir mais vezes? Por favor!
– Que bom que gostou Narciso, seu irmão nunca gostou de trabalhar com a terra. Mas esse não é um trabalho pra um menino de oito anos, ele é pesado e mais duro do que parece. Vai exigir seu tempo, sua força, sua vida, para só no final te recompensar. Mas já que você gostou, prometo te trazer mais vezes.

Pai e filho deixaram a horta enquanto o sol deixava o céu.
Phillipe Funke era vassalo de Sir Eddard mas tinha total autonomia sobre seu pedaço de terra. A horta, de onde vinham, ficava no topo de uma colina de onde se podia ver o Palácio Real de Arzallum, mas não era a única, Phillipe tinha varias plantações. Ajudado por outras cinco pessoas Phillipe plantava verduras, frutas, legumes, flores e o que mais pudesse. Por ser vassalo, Phillipe devia ao seu suserano uma parte da produção. Por ser justo, dividia para as famílias que trabalhavam com ele em partes iguais. O que restava era o bastante para sua família se alimentar e ter lucro vendendo na feira de Andreanne.
Phillipe era sempre o ultimo a voltar para casa, trilhava o caminho, satisfeito com a felicidade do filho que não parava de falar e esperando ver as luzes das lanternas acesas na sua casa.

Mas o brilho que viu foi muito maior.

Narciso viu o fogo de longe e soube que era a sua casa. Narciso viu seu pai largar as ferramentas para correr e correu atrás dele. Viu uma mulher corcunda dançando em frente ao fogo. Viu seu pai gritar, e de repente, parar de correr, de ver, e andar, em transe, em direção à mulher. Tentou correr mais rápido, tropeçou numa raiz e caiu.

Narciso viu a mulher levantar uma faca torta e matar o seu pai. E não levantou mais porque tinha medo dela. Escondeu-se no tronco da arvore enorme e ficou quieto, aterrorizado, ate que o fogo apagasse e ele não ouvisse mais nada.

Narciso levantou ainda sujo de terra e, cambaleando, andou o que pareceram quilômetros. Viu seus pais mortos nas extremidades de um circulo desenhado com as cinzas do que fora sua casa, viu sua irmã mutilada no centro do círculo e caiu ao lado do corpo inerte dela.

Chorou por eras.


Sem Infância

Narciso foi encontrado pelo seu irmão Apolo, que, durante todo o trajeto até a casa de Sir Eddard disse apenas uma palavra: Bruxa.
Apolo entregou Narciso a uma criada da casa de Sir Eddard, tinha entrado para o exercito há dois anos e não podia cuidar do irmão integralmente. Não iria trabalhar no campo, como fizera seu pai. Narciso cresceu na casa de Sir Eddard e nos alojamentos do exercito. Frequentou a escola, mas não era uma criança comum. Ria pouco, não chorava, estava o tempo todo resignado.

Convivendo com soldados Narciso aprendeu a bater, a esquivar e a correr. Seu irmão era o único amigo que tinha, mas não conversava muito com ele também. Até o dia em que foi preso por ter espancado um recruta. Narciso achou que sua vida terminaria ali, que iria apanhar de todos os outros soldados e teria seu corpo exposto como uma lição para brigões. Mas não foi isso que aconteceu.

Apolo chegou à cela, e Narciso achou que estava salvo, mas logo atrás dele veio Sir Eddard. Narciso perdeu de vez as esperanças.

– Esse é esse o menino que bateu em um de meus homens? Esse tão pequeno? – Perguntou Sir Eddard.
– Sim, senhor. Esse é meu irmão Narciso.
– É esse mesmo? Ele não parece nem um pouco com você.
– Mas é o meu irmão, senhor.
– Isso é preocupante, Apolo, tenho homens que apanham de crianças de 11 anos. Não sei se devo me importar com homens mal treinados ou com o fato de que você não pode controlar o seu próprio irmão.
– Por isso pedi sua ajuda, milorde. Narciso tem talento, mas tem uma raiva que não consegue controlar, ele também não brinca com outras crianças. Acho que o senhor pode ajuda-lo.
– Seu pai era um homem bom, Apolo, e você também é. Vou fazer desse monstrinho uma criança normal e um homem de verdade como o seu pai foi.

Lorde Eddard cuidou pessoalmente da educação de Narciso e o ensinou armas e estratégias. O treinamento mudou o menino e ele, aos poucos foi se tornando um menino quase comum.

Quase.

Narciso tinha talento, aprendia muito rápido as lições de Sir Eddard e aos 13 anos já partia com pelotões para interver em disputas violentas de plebeus e vassalos de Lorde Eddard. Ouviu falar que o Rei Anísio estava reativando os Caçadores de Bruxas, e desejou ser um deles – era pra isso que vivia: matar aquela bruxa. Mas não poderia, era só uma criança e tudo aquilo eram só boatos.


Sem Piedade

Quando Narciso completou quinze anos Sir Eddard ofereceu um banquete para seus principais vassalos e o reconheceu publicamente como seu protegido. Quando um Lorde nomeava alguém como protegido era como dizer a todos que aquele rapaz saberia tudo que ele sabia e teria a vida e a honra ligada à sua Casa, era uma dádiva que trazia consigo muita responsabilidade.

Depois de falar com os principais lordes, ouvir suas queixas, sugestões e toda a conversa fiada, Sir Eddard ordenou a Apolo e Narciso que cuidassem de sua casa, ele estaria fora durante uma semana e queria seu filho, recém nascido, em segurança. Apolo – Chefe da Guarda – e Narciso – o Protegido – passaram o dia executando o procedimento padrão de segurança que um castelo toma quando o seu Senhor está fora, quando terminaram a noite havia chegado. Os irmãos comiam na cozinha quando uma das criadas que cuidavam do filho de Sir Eddard entrou chorando, trazida por alguns soldados.

– Senhor, encontramos ela chorando no estábulo, ela tem algo pra te dizer – o soldado trouxe a mulher até Apolo.
– Mas o que diabos aconteceu? – Apolo respondeu já imaginando.

A mulher estava soluçando e tremendo quando levantou a cabeça devagar para encarar o Chefe Guarda. “Ela levou ele” foi o que disse. E tanto Apolo quanto Narciso sentiram um frio correr pela espinha. “Eu não pude fazer nada! Não conseguia me mexer! Eu vi coisas horríveis e quando eu dei por mim o menino não estava mais lá. A mulher, a mulher que encontrei! Foi ela que levou ele!”. Falou tudo em um fôlego só e começou a chorar, soluçar e tremer mais uma vez com mais força do que antes. Apolo teve de esperar a mulher se acalmar para continuar o relato, Narciso já andava de um lado pro outro.

– A senhora kathelyn me pediu para dar banho no bebê – a mulher continuou – mas depois de dar banho nele, por algum motivo, senti vontade de sair para passear com o bebê. Levei ele lá para fora para que ele visse o tamanho do castelo que um dia ia ser dele, mas encontrei uma mulher vindo da estrada que vai pra Andreanne. Ela começou a conversar comigo, estava interessada no bebe. De repente eu comecei a ver... coisas...
Antes que a mulher se descontrolasse mais uma vez Narciso segurou seu braço.

– Sumiu alguma coisa sua?
– E-e-eu não sei...
– Isso é importante – disse e apertou com mais força – sumiu algo seu?
– A escova que uso, não a vejo já tem alguns dias...

Narciso soltou a mulher e olhou para o irmão, e ambos souberam que aquilo não se tratava de seqüestro ou de vingança, aquilo era obra de uma bruxa. Sem trocar nenhuma palavra os irmãos saíram da cozinha, eles já sabiam o que iriam fazer. Narciso correu para o estábulo e preparou seu cavalo enquanto o seu irmão reunia homens e dava ordens, dentro de meia hora estavam prontos para sair. A morte da família levou os irmãos a pesquisar o que pudessem sobre bruxas. Eles sabiam que a bruxa não estaria na cidade, nem mataria o menino ao acaso, ela precisava de um ritual e faria isso dentro da floresta.
Seguiram o rastro da bruxa floresta adentro. Apolo viu homens treinados tremerem a cada movimento, a cada som diferente, viu medo nos seus olhos. Viu Narciso, mais uma vez, calado, e sabia no que o irmão estava pensando.

A floresta foi ficando mais densa e as arvores maiores à medida que andavam, chegou um ponto em que não conseguiam mais ver o céu. Os homens já tinham perdido as esperanças de encontrar a bruxa, ou tinha esperanças de NÃO encontra-la. Parecia que tinham perdido para sempre o filho de Sir Eddard. Até que Narciso ouviu uma musica. Um canto macabro que lembrava o dia em que viu seu pai morrer. Ele precisava ser rápido.
Narciso obrigou seu cavalo a correr ate que o animal não conseguiu mais passar por entre as arvores. Entao correu sozinho em direção àquela canção macabra. Sabia que era loucura ir sozinho, mas Apolo e seus homens deveriam estar logo atrás dele. Correu até chegar a uma clareira. A bruxa desenhara um circulo com sinais no chão, o bebe estava no meio. Narciso sentiu uma onda de choque no corpo, mas não parou. Viu mais uma vez seu pai morrendo, mas não parou. Correu até a bruxa e enfiou, de vez, a sua espada no seu coração.


Sem Rosto

Entregaram o bebe a sua mãe, Kathelyn sem nenhum arranhão. Os homens espalharam a historia e a bravura de Narciso foi recompensada pelo próprio Rei.
Na frente do Rei e de toda a corte, ele gritou, gritou com todas as forças, bateu os pés no chão e todos olharam para ele, mas não olhavam apenas para ele, olhavam para uma massa de armadura vermelha, sem rostos, ostentando um dragão como insignia:

os Caçadores de Bruxas.

3 comentários:

  1. Interessante o conto.... achei que seria maior quando você falou que estava escrevendo.... é empolgante e a história corre suavemente.
    Parabéns.

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  2. Ele vai ser Realmente maior! Ainda vou escrever muito mais sobre Narciso =D

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